Figura 1: Geografia global da incidência de ameaças para abastecimento de água.
Valores em vermelho identificam maior ameaça. Retirado de Vörösmarty, C. J. et al., 2010
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por Ricardo Brasil Choueri
Grande parte do mundo
já está sofrendo com a pressão e a significativa escassez de água, e a situação
tende a piorar à medida que as populações globais, as economias e as taxas de
consumo continuam a crescer. Além disso, estamos alterando o sistema global da
água de forma significativa, sem o conhecimento adequado de seu funcionamento e
de como o mesmo responde às mudanças [1]. Alguns autores [2] creem que 80% da
população mundial está exposta a um grau elevado de escassez hídrica e 65% das espécies
que vivem nos rios estão
ameaçadas. A principal causa é a ação humana, como a construção excessiva de
barragens e hidrelétricas, falta de saneamento, pesca predatória e poluição
(Figura 1).
Alguns
estudos a partir de dados hidrometeorológicos extremos e prospecção de cenários
de mudança climática fornecem evidências de que os recursos aquáticos serão
impactados, com implicações sérias para a seguridade humana. Mudanças
climáticas associadas inclusive às modificações nos padrões de precipitação (chuvas)
[3] afetarão de maneira negativa a produção de cereais em países em desenvolvimento (Figura 2) [4]. O número
de pessoas afetadas globalmente por desastres naturais (incluindo secas e
cheias) tem aumentado gradualmente desde a década de 1970 e eventos
hidrológicos extremos provavelmente serão mais severos e mais frequentes
(Figura 3) [5,6].
Figura 2: Mudança na produção de cereais em países desenvolvidos e em desenvolvimento considerando um aumento no aquecimento em torno de 3oC, em três modelos. Retirado de Stern et al. (2006). |
O Brasil, embora ocupe
uma posição privilegiada em relação à disponibilidade de recursos hídricos no
mundo, possui reservas de água doce que não estão distribuídas de maneira
uniforme pelo país. Oitenta por cento destas reservas concentram-se na região
Amazônica, enquanto que apenas 4% estão na região semiárida do Nordeste, que
abriga 35% da população brasileira, em sua maioria famílias de baixa renda. No
Sul e Sudeste, onde vivem 60% da população, estas pessoas passaram a enfrentar
ameaça crescente de escassez de água, local ou generalizada, em decorrência do
crescimento econômico, da urbanização acelerada e poluição hídrica (Figura 4)
[7].
Associado a isso, a
região Nordeste e Sudeste vem experimentando redução no nível de chuvas
verificados mensalmente (desde 2012 na região Nordeste e desde outubro de 2013
na região Sudeste) em relação à média histórica mensal (desde 1930) [8]. Estes
eventos deflagraram uma das maiores crises hídricas vivenciadas pelo país,
sobretudo em 2014, afetando o mais importante manancial da maior cidade da
América do Sul: O sistema Cantareira, que abastece mais de 8,8 milhões de
pessoas na cidade de São Paulo (Figuras 5, 6 e 7) [9].
Figura 5: Vazões mensais afluentes ao reservatório equivalente do Sistema Cantareira. Retirado de ANA (2015). |
Figura 6: Evolução do estoque de água no Sistema Cantareira. Retirado de ANA (2015). |
Figura 7: Retirada de água por bombeamento do Sistema Cantareira, em novembro de 2014. Foto do acervo pessoal do autor. |
As causas da crise
hídrica não podem ser reduzidas, entretanto, apenas às menores taxas
pluviométricas (chuvas) verificadas nos últimos anos, pois outros fatores
relacionados à gestão de demanda e oferta são importantes para agravar ou
atenuar sua ocorrência [8,10].
Nesse sentido, a gestão
dos recursos hídricos torna-se importante para garantir água em quantidade e
qualidade para a sociedade. No Brasil, historicamente, a gestão de águas se
desenvolveu de forma fragmentada e centralizada. Fragmentada porque cada setor
realizava seu próprio planejamento (energia elétrica, agricultura irrigada,
saneamento, etc.). Centralizada porque os governos estaduais e federal definiam
a política sem a devida participação dos governos municipais, dos usuários da
água e da sociedade civil. Debates internacionais e nacionais ocorridos na
década de 1980 e 1990 coincidiam quanto à definição dos princípios básicos de
um novo modelo de gestão: deveria ser descentralizada, integrada e participativa [11]. Estes princípios
foram incluídos em um novo paradigma para gestão dos recursos hídricos: A
Política Nacional de Recursos Hídricos – PNRH (Lei Federal 9.433/1997).
Dessa forma, a gestão
das águas não pode ser desintegrada da gestão ambiental. Atualmente, as duas
políticas nacionais que tratam especificamente do gerenciamento ambiental e de
recursos hídricos são respectivamente a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei
6.938/81) e a já citada Política Nacional de Recursos Hídricos. A defasagem
temporal entre suas instituições (16 anos) justifica as grandes diferenças
conceituais que adotam [12].
Gerencialmente, a
primeira se caracteriza por uma abordagem comando-e-controle, com uso de instrumentos normativos, enquanto a segunda
elenca instrumentos econômicos de gerenciamento, como a cobrança pelo uso de
água. Devido às superposições existentes nas duas políticas é de se esperar que
pelo menos alguma forma de articulação exista, quando não for possível uma
completa integração por questões organizacionais [12].
Particularmente sobre o instrumento de cobrança,
este possui três objetivos: a) reconhecer a água como bem econômico e dar ao
usuário uma indicação de seu real valor; b)
incentivar a racionalização do uso da água; c) obter recursos financeiros para
o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de
recursos hídricos. Cabe destacar que os
valores arrecadados com a cobrança pelo uso de recursos hídricos serão
aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados e serão
utilizados tanto no financiamento de estudos, programas, projetos e obras
incluídos nos Planos de Recursos Hídricos quanto para o pagamento de despesas
de implantação e custeio administrativo dos órgãos e entidades integrantes do
Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
Outro aspecto importante destacado por Lanna [13] é que a Lei 9.433 de 1997 apresenta como novidade a
cobrança da água bruta bem como o uso da água disponível no ambiente como
receptor de resíduos. A Lei pode se reportar também a necessidade de cobrança
para abastecimento de água ou a tratamento de esgotos, mas não apresenta uma
novidade teórica, pois já se aplica desde muito antes da promulgação desta Lei.
Assim, neste cenário de mudanças climáticas e eventos extremos, questões
relacionadas à oferta de água afetarão um número cada vez maior de pessoas,
sobretudo aquelas em condições mais vulneráveis. O desafio que se coloca será integrar cada vez mais a
gestão da água com outras políticas correlatas, sobretudo a ambiental, e ainda
permitir que os principais interessados dentro de uma bacia hidrográfica tenham
condições efetivas de participação tanto na formulação quanto na execução de políticas
de recursos hídricos.
Referências
1. PUR. Planet Under Pressure. 2012.
Recomendações para a Rio +20: Segurança Hídrica para um planeta sob Pressão.
Londres, 2012. Disponível em: http://www.inpe.br/igbp/arquivos/Water_FINAL_LR-portugues.pdf.
Acessado em: 26nov2015.
2. Vörösmarty, C. J. et al., 2010. Global threats to human water
security and river biodiversity. Nature 467, 555–561.
3. EMBRAPA 2008. Aquecimento global e a nova Geografi a da produção
agrícola no Brasil. 84 p.
4. Stern et al., 2006. Review: The Economics of Climate
Change, HM
Treasury, London.
5. Allouche, J. 2011.
The sustainability and resilience of global water and food systems: Political
analisys of the interplay security, resource scarcity, political systems and
global trade. Food Policy 36, S3-S8.
6. WMO. 2014. Atlas
of Mortality and Economic Losses from Weather, Climate and Water Extremes
(1970-2012). Geneva: Switzerland.
7. Marengo, J.A., et al. 2010. Mudanças Climáticas
e Recursos Hídricos. Capitulo
12, (pp-200-215). Em: Bicudo, C.E.M., Tundisi, J.G. & Scheuenstuhl, M.C.B.
Águas do Brasil: Análises Estratégicas. São Paulo: Instituto de Botânica. 222
p. Disponível em: http://www.abc.org.br/IMG/pdf/doc-818.pdf. Acessado
em: 10/10/2015.
8. ANA. 2015. Encarte Especial Sobre a
Crise Hídrica. Em: Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil: Informe 2014.
Brasília-DF.
9. Martins, A. 2014. Sistema Cantareira e a Crise
da Água em São Paulo: A Falta de Transparência no Acesso à Informação.
Disponível em: http://artigo19.org/wp-content/uploads/2014/12/Relat%C3%B3rio-Sistema-Cantareira-e-a-Crise-da-%C3%81gua-em-S%C3%A3o-Paulo-%E2%80%93-a-falta-de-transpar%C3%AAncia-no-acesso-%C3%A0-informa%C3%A7%C3%A3o.pdf.
Acesso em: 10/12/2015.
10. Greenpeace. 2015. Crise Hídrica e
Direitos Humanos: Relatório de Violação de Direitos Humanos na Gestão Hídrica
do estado de São Paulo. Disponível em: http://www.greenpeace.org/brasil/Global/brasil/documentos/2015/greenpeace_relatorio_hidrica_A4-ALTA.pdf. Acessado
em: 10/12/2015.
11. Abers, R. & Jorge, K. D. 2005.
Descentralização da Gestão da Água: Por quê os Comitês de Bacias estão sendo
criados? Amb&Soc, v 8, n 2,
jul-dez.
12. Lanna, A.E. 2000. A inserção da gestão
das águas na gestão ambiental. Parte 2: A Gestão dos Recursos Hídricos no
Contexto das Políticas Ambientais. Disponível em: http://www.uff.br/cienciaambiental/biblioteca/rhidricos/parte2.pdf.
Acessado em 26nov2015.
13. Lanna, A.E. 2003. Uso de Instrumentos
Econômicos na Gestão das Águas no Brasil. Bahia Análise de Dados, v 13, n.
especial, 441-451.
Vídeos:
Sobradinho – Sá & Guarabyra
https://www.youtube.com/watch?v=naxgLThFCsc
Planeta Água – Guilherme Arantes. https://www.youtube.com/watch?v=s75hS0H_dNc
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