quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Recursos Hídricos E Sustentabilidade: Construindo Caminhos De Gestão

Figura 1: Geografia global da incidência de ameaças para abastecimento de água. 
Valores em vermelho identificam maior ameaça. Retirado de Vörösmarty, C. J. et al., 2010



por Ricardo Brasil Choueri


Grande parte do mundo já está sofrendo com a pressão e a significativa escassez de água, e a situação tende a piorar à medida que as populações globais, as economias e as taxas de consumo continuam a crescer. Além disso, estamos alterando o sistema global da água de forma significativa, sem o conhecimento adequado de seu funcionamento e de como o mesmo responde às mudanças [1]. Alguns autores [2] creem que 80% da população mundial está exposta a um grau elevado de escassez hídrica e 65% das espécies que vivem nos rios estão ameaçadas. A principal causa é a ação humana, como a construção excessiva de barragens e hidrelétricas, falta de saneamento, pesca predatória e poluição (Figura 1).
Alguns estudos a partir de dados hidrometeorológicos extremos e prospecção de cenários de mudança climática fornecem evidências de que os recursos aquáticos serão impactados, com implicações sérias para a seguridade humana. Mudanças climáticas associadas inclusive às modificações nos padrões de precipitação (chuvas) [3] afetarão de maneira negativa a produção de cereais  em países em desenvolvimento (Figura 2) [4]. O número de pessoas afetadas globalmente por desastres naturais (incluindo secas e cheias) tem aumentado gradualmente desde a década de 1970 e eventos hidrológicos extremos provavelmente serão mais severos e mais frequentes (Figura 3) [5,6].
 
Figura 2: Mudança na produção de cereais em países desenvolvidos e em desenvolvimento considerando um aumento no aquecimento em torno de 3oC, em três modelos. Retirado de Stern et al. (2006).

Figura 3 – Número de desastres reportados por década (1971-2010).
Azul escuro são enchentes; azul claro são deslizamentos; verde são tempestades; amarelo são secas;
 vermelho são temperaturas extremas; laranja são queimadas. Retirado de WMO (2014).


O Brasil, embora ocupe uma posição privilegiada em relação à disponibilidade de recursos hídricos no mundo, possui reservas de água doce que não estão distribuídas de maneira uniforme pelo país. Oitenta por cento destas reservas concentram-se na região Amazônica, enquanto que apenas 4% estão na região semiárida do Nordeste, que abriga 35% da população brasileira, em sua maioria famílias de baixa renda. No Sul e Sudeste, onde vivem 60% da população, estas pessoas passaram a enfrentar ameaça crescente de escassez de água, local ou generalizada, em decorrência do crescimento econômico, da urbanização acelerada e poluição hídrica (Figura 4) [7].
Associado a isso, a região Nordeste e Sudeste vem experimentando redução no nível de chuvas verificados mensalmente (desde 2012 na região Nordeste e desde outubro de 2013 na região Sudeste) em relação à média histórica mensal (desde 1930) [8]. Estes eventos deflagraram uma das maiores crises hídricas vivenciadas pelo país, sobretudo em 2014, afetando o mais importante manancial da maior cidade da América do Sul: O sistema Cantareira, que abastece mais de 8,8 milhões de pessoas na cidade de São Paulo (Figuras 5, 6 e 7) [9].

Figura 4: Bacias de rios de domínio da União e dos Estados com trechos críticos identificados. Trechos críticos são áreas de conflito, seja pela concorrência de usos ou baixa oferta, ou ambos. Retirado de ANA (2015).

Figura 5: Vazões mensais afluentes ao reservatório equivalente do Sistema Cantareira. Retirado de ANA (2015).
Figura 6: Evolução do estoque de água no Sistema Cantareira. Retirado de ANA (2015).
Figura 7: Retirada de água por bombeamento do Sistema Cantareira, em novembro de 2014.
Foto do acervo pessoal do autor.


As causas da crise hídrica não podem ser reduzidas, entretanto, apenas às menores taxas pluviométricas (chuvas) verificadas nos últimos anos, pois outros fatores relacionados à gestão de demanda e oferta são importantes para agravar ou atenuar sua ocorrência [8,10].
Nesse sentido, a gestão dos recursos hídricos torna-se importante para garantir água em quantidade e qualidade para a sociedade. No Brasil, historicamente, a gestão de águas se desenvolveu de forma fragmentada e centralizada. Fragmentada porque cada setor realizava seu próprio planejamento (energia elétrica, agricultura irrigada, saneamento, etc.). Centralizada porque os governos estaduais e federal definiam a política sem a devida participação dos governos municipais, dos usuários da água e da sociedade civil. Debates internacionais e nacionais ocorridos na década de 1980 e 1990 coincidiam quanto à definição dos princípios básicos de um novo modelo de gestão: deveria ser descentralizada, integrada e participativa [11]. Estes princípios foram incluídos em um novo paradigma para gestão dos recursos hídricos: A Política Nacional de Recursos Hídricos – PNRH (Lei Federal 9.433/1997).
Dessa forma, a gestão das águas não pode ser desintegrada da gestão ambiental. Atualmente, as duas políticas nacionais que tratam especificamente do gerenciamento ambiental e de recursos hídricos são respectivamente a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei 6.938/81) e a já citada Política Nacional de Recursos Hídricos. A defasagem temporal entre suas instituições (16 anos) justifica as grandes diferenças conceituais que adotam [12].
Gerencialmente, a primeira se caracteriza por uma abordagem comando-e-controle, com uso de instrumentos normativos, enquanto a segunda elenca instrumentos econômicos de gerenciamento, como a cobrança pelo uso de água. Devido às superposições existentes nas duas políticas é de se esperar que pelo menos alguma forma de articulação exista, quando não for possível uma completa integração por questões organizacionais [12].
Particularmente sobre o instrumento de cobrança, este possui três objetivos: a) reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor; b) incentivar a racionalização do uso da água; c) obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos. Cabe destacar que os valores arrecadados com a cobrança pelo uso de recursos hídricos serão aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados e serão utilizados tanto no financiamento de estudos, programas, projetos e obras incluídos nos Planos de Recursos Hídricos quanto para o pagamento de despesas de implantação e custeio administrativo dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
Outro aspecto importante destacado por Lanna [13] é que a Lei 9.433 de 1997 apresenta como novidade a cobrança da água bruta bem como o uso da água disponível no ambiente como receptor de resíduos. A Lei pode se reportar também a necessidade de cobrança para abastecimento de água ou a tratamento de esgotos, mas não apresenta uma novidade teórica, pois já se aplica desde muito antes da promulgação desta Lei.
Assim, neste cenário de mudanças climáticas e eventos extremos, questões relacionadas à oferta de água afetarão um número cada vez maior de pessoas, sobretudo aquelas em condições mais vulneráveis. O desafio que se coloca será integrar cada vez mais a gestão da água com outras políticas correlatas, sobretudo a ambiental, e ainda permitir que os principais interessados dentro de uma bacia hidrográfica tenham condições efetivas de participação tanto na formulação quanto na execução de políticas de recursos hídricos.


Referências
1. PUR. Planet Under Pressure. 2012. Recomendações para a Rio +20: Segurança Hídrica para um planeta sob Pressão. Londres, 2012.  Disponível em: http://www.inpe.br/igbp/arquivos/Water_FINAL_LR-portugues.pdf. Acessado em: 26nov2015.
2. Vörösmarty, C. J. et al., 2010. Global threats to human water security and river biodiversity. Nature 467555–561.
3. EMBRAPA 2008. Aquecimento global e a nova Geografi a da produção agrícola no Brasil. 84 p.
4. Stern et al., 2006. Review: The Economics of Climate Change, HM Treasury, London.
5. Allouche, J. 2011. The sustainability and resilience of global water and food systems: Political analisys of the interplay security, resource scarcity, political systems and global trade. Food Policy 36, S3-S8.
6. WMO. 2014. Atlas of Mortality and Economic Losses from Weather, Climate and Water Extremes (1970-2012). Geneva: Switzerland.
7. Marengo, J.A., et al. 2010. Mudanças Climáticas e Recursos Hídricos. Capitulo 12, (pp-200-215). Em: Bicudo, C.E.M., Tundisi, J.G. & Scheuenstuhl, M.C.B. Águas do Brasil: Análises Estratégicas. São Paulo: Instituto de Botânica. 222 p. Disponível em: http://www.abc.org.br/IMG/pdf/doc-818.pdf. Acessado em: 10/10/2015.
8. ANA. 2015. Encarte Especial Sobre a Crise Hídrica. Em: Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil: Informe 2014. Brasília-DF.
9. Martins, A. 2014. Sistema Cantareira e a Crise da Água em São Paulo: A Falta de Transparência no Acesso à Informação. Disponível em: http://artigo19.org/wp-content/uploads/2014/12/Relat%C3%B3rio-Sistema-Cantareira-e-a-Crise-da-%C3%81gua-em-S%C3%A3o-Paulo-%E2%80%93-a-falta-de-transpar%C3%AAncia-no-acesso-%C3%A0-informa%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em: 10/12/2015.
10. Greenpeace. 2015. Crise Hídrica e Direitos Humanos: Relatório de Violação de Direitos Humanos na Gestão Hídrica do estado de São Paulo. Disponível em: http://www.greenpeace.org/brasil/Global/brasil/documentos/2015/greenpeace_relatorio_hidrica_A4-ALTA.pdf. Acessado em: 10/12/2015.
11. Abers, R. & Jorge, K. D. 2005. Descentralização da Gestão da Água: Por quê os Comitês de Bacias estão sendo criados? Amb&Soc, v 8, n 2, jul-dez.
12. Lanna, A.E. 2000. A inserção da gestão das águas na gestão ambiental. Parte 2: A Gestão dos Recursos Hídricos no Contexto das Políticas Ambientais. Disponível em: http://www.uff.br/cienciaambiental/biblioteca/rhidricos/parte2.pdf. Acessado em 26nov2015.
13. Lanna, A.E. 2003. Uso de Instrumentos Econômicos na Gestão das Águas no Brasil. Bahia Análise de Dados, v 13, n. especial, 441-451.

Vídeos:
Sobradinho – Sá & Guarabyra https://www.youtube.com/watch?v=naxgLThFCsc
Planeta Água – Guilherme Arantes. https://www.youtube.com/watch?v=s75hS0H_dNc
You Must Be Kidding – Will Butler. https://www.youtube.com/watch?v=sEMJbdkm9So

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